A atividade econômico-empresarial brasileira é marcada pela participação direta do Estado por meio de empresas públicas e sociedades de economia mista. Naquelas, o capital é detido exclusivamente pelo Estado; nessas, o Estado é acionista controlador, também contando com capital privado em sua composição acionária. A sociedade de economia mista é uma sociedade anônima (inclusive com ações listadas em bolsa de valores, em que representam cerca de um quarto do volume diário de negociações) à qual, para fazer frente ao interesse público que justificou a sua criação, aplicam-se normas especiais, dispostas ora em sua própria lei de constituição, ora em dispositivos específicas constantes da lei acionária brasileira (artigos 235 a 240 da Lei n. º 6.404/76), mas que será igualmente afetada por discussões que interessam ao direito societário como um todo. Isso é verdade também para o problema da validade e da obrigatoriedade da cláusula arbitral prevista nos estatutos sociais das companhias brasileiras.
A Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobrás é um exemplo clamoroso a esse respeito, não só por causa do gigantismo da sua atividade, mas, especialmente, por causa da notoriedade, inclusive em nível internacional, dos fatos envolvendo essa companhia que levaram a investidores titulares de valores mobiliários de sua emissão a propor class action perante o juízo federal norte-americano (Southern District of New York), compondo o caso In re Petrobras Securities Litigation (Civil Action n.º 14-cv-09662). Alega-se, em suma, que a companhia, suas subsidiárias e uma série de seus administradores, envolvidos em atos de corrupção que obedeceriam a um projeto político de poder do partido então titular do governo federal brasileiro, em conluio com grandes empreiteiras cartelizadas para ganhar todos os grandes contratos licitados pela Petrobrás, fez, durante esse período, falsas alegações e prestou falsas informações perante os investidores e perante autoridades norte-americanas de regulação do mercado de capitais. Em razão desses fatos, teria havido uma considerável perda do valor do mercado da companhia (de $310 bilhões em 2009 a $39 bilhões em 2015), prejudicando o investimento feito.
Para além de ter ações listadas na bolsa brasileira, a BM&F Bovespa, a Petrobrás, sempre na qualidade de companhia constituída segundo as leis brasileiras, emitiu, junto à New York Stock Exchange, American Depository Shares que representam o seu capital ordinário e preferencial. Por meio da class action, reuniram-se, como classe, as pessoas ou entidades que, entre janeiro de 2010 e março de 2015, compraram, em bolsa ou em subsequentes transações domésticas, ADSs de emissão da Petrobrás na NYSE. Com base em dispositivos da Securities Exchange Act de 1934 e do Securities Act de 1933, os autores alegam que a Petrobrás e seus administradores prestaram uma série de informações falsas, ou se omitiram na prestação de informações, com relação ao valor dos ativos da empresa, o montante das suas despesas e das suas receitas, e a efetividade do controle interno sobre os relatórios financeiros, e a integridade das suas operações. Ulteriormente, com base no direito brasileiro, também se demandou coletivamente em nome de uma subclasse de pessoas ou entidades que, no mesmo período, para além de terem comprado valores mobiliários da Petrobrás emitidas junto à NYSE, também compraram ações ordinárias e preferenciais da Petrobrás negociadas na BM&FBovespa.
Em junho de 2002, a Petrobrás modificara o seu estatuto, em assembleia geral extraordinária, para incluir o artigo 58, segundo o qual disputas envolvendo a sociedade, seus acionistas, administradores e membros do conselho fiscal com relação às normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários e com relação às regras aplicáveis às operações no mercado de capitais em geral devem ser resolvidas de acordo com as regras da Câmara de Arbitragem do Mercado da BM&FBovespa.
Os réus, então, em caráter preliminar, pleitearam o afastamento das alegações fundadas no direito brasileiro pelo simples fato de que essas questões estariam obrigatoriamente sujeitas a arbitragem, nos termos do estatuto da Petrobrás. Portanto, questão a ser preliminarmente decidida pelo juiz norte-americano era se, de acordo com o direito brasileiro, os titulares de valores mobiliários da Petrobrás negociados na BM&FBovespa, e que estavam demandando contra a Petrobrás e seus administradores por meio da class action, deveriam ter requerido a instalação de arbitragem para a discussão dessa demanda, ao invés de fazê-lo perante o juízo estatal.
Por meio de order datada de 9 de julho de 2015, o tribunal em parte concedeu e em parte negou as moções dos réus. Em 30 de julho de 2015, apresentou-se a opinion que explica as razões dessa decisão (cf. “Opinion”, In re Petrobras Securities Litigation, 116 F.Supp.3d 368, 2015 WL 4557364, Fed. Sec. L. Rep. P 98, 587, United States District Court, S.D. New York, July 30, 2015).
Sem afastar as alegações dos autores baseadas no Securities Exchange Act e no Securitires Act, com relação às quais o processo está seguindo normalmente, o juiz entendeu, por outro lado, que não poderia conhecer as alegações de violação do direito brasileiro com relação aos membros da classe que, para além dos securities emitidos nos Estados Unidos, também compraram ações emitidas na bolsa de valores brasileira.
Trata-se de situação em que um juiz nacional (norte-americano, no caso) se vê em posição de ter que interpretar e mandar aplicar lei estrangeira (brasileira, no caso). De fato, a questão se os compradores de ações da Petrobrás na BM&FBovespa tinham ou não concordado com cláusula arbitral obrigatória é uma questão de direito brasileiro. E, para lidar com um direito estrangeiro, o juiz norte-americano largamente se valeu do que lhe foi referido por especialistas de direito societário brasileiro, balançando o que lhe foi reportado ora pelo expert dos réus, ora pelo expert dos autores, quase como se estivesse diante de um debate entre ambos. O juiz mostrou-se persuadido pela argumentação do especialista dos réus, que teria demonstrado que o “weight of authority” balança, em todos os aspectos, para a obrigatoriedade da cláusula arbitral. Ao fim, declara o juiz que:
“The Court is persuaded that, under Brazilian law, Petrobras’ arbitrarion clause is valid and enforceable against purchasers of Petrobras securities on the Bovespa. […] By purchasing shares of stock in Brazilian oil company on Brazilian stock exchange after company amended its bylaws to provide for arbitration of disputes arising under rules issued by the Brazilian Securities and Exchange Commission, investors manifested their consent to arbitration provision and had to arbitrate any securities fraud claims arising under Brazilian law, but not to arbitration of separate securities fraud claims arising under United States law based on domestic purchases of company’s stock.”
A opinion de um juiz estrangeiro, ao analisar a questão sob o prisma do direito brasileiro, em caso tão relevante e de tal impacto, poderia representar uma pá de cal na questão da obrigatoriedade da cláusula arbitral? Não se crê que assim será. Permanecerão sempre latentes os argumentos até mesmo pela invalidade, e não só pela não obrigatoriedade da cláusula arbitral, especialmente naqueles casos em que se julgar que a arbitragem não será capaz de fornecer as proteções a que faz jus o investidor de valores mobiliários.